Manipulação da verdade,  Mediocridade,  Nepotismo

Mais dinheiro no bolso? O truque fiscal da retenção na fonte (e o acerto que chega mais tarde)

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BOX DE FACTOS
  • Retenção na fonte é um adiantamento do IRS — não é o imposto final.
  • Baixar a retenção pode aumentar o líquido mensal, mas pode reduzir o reembolso (ou gerar pagamento) no acerto anual.
  • Em 2025, existiram períodos diferentes de tabelas (ex.: Janeiro–Julho, Agosto–Setembro, Outubro–Dezembro), o que amplifica a confusão pública.
  • O mecanismo de retroactivos pode provocar meses “milagrosos” no recibo — um efeito emocional, mais do que estrutural.
  • Para provar “descida de impostos”, o que conta é a colecta anual apurada, não o valor retido em cada mês.

“Mais dinheiro no bolso”? O truque fiscal da retenção na fonte

Há frases que brilham como moedas novas. “Mais dinheiro no bolso” é uma delas. Mas, no IRS, o bolso tem duas portas: a do mês e a do ano. E é entre essas duas portas que a política aprende a fazer magia.

1) Retenção na fonte não é imposto final — é apenas adiantamento

A retenção na fonte funciona como um pagamento antecipado ao longo do ano. É um mecanismo de cobrança faseada: o Estado recebe mensalmente, e depois, na declaração anual, faz-se o acerto — devolvendo (reembolso) ou cobrando o remanescente.

Quando um Governo anuncia que “baixou impostos” e a prova apresentada é apenas “olhe, o seu líquido subiu este mês”, a pergunta certa é simples: baixou o IRS anual apurado ou apenas mudou o ritmo do adiantamento?

2) O truque clássico: dar agora, cobrar (ou devolver menos) depois

Uma retenção mais baixa produz um efeito imediato: mais dinheiro no mês. É visível, é táctil, é emocional. Mas o acerto anual tem memória: se ao longo do ano entrou menos adiantamento, o reembolso pode encolher — ou o contribuinte pode ser chamado a pagar.

Isto não é necessariamente injusto; é, muitas vezes, uma correcção de tabelas. A manipulação está noutro lugar: na forma como se vende o fenómeno, confundindo fluxo de caixa mensal com carga fiscal anual.

3) A engenharia de percepção: tabelas por fases e meses “especiais”

Quando um mesmo ano tem tabelas de retenção por períodos, a comparação pública torna-se armadilha. Muitos olham para um mês “especial” e concluem que a vida mudou. Mas o IRS é uma conta anual: um filme, não uma fotografia.

Em 2025, existiram tabelas de retenção apresentadas em períodos distintos (por exemplo, com um bloco específico de Agosto e Setembro e outro de Outubro a Dezembro). Este tipo de arquitectura pode produzir recibos com aumentos abruptos, associados a mecanismos de retroactividade e ajustamentos ao longo do ano.

4) “Baixámos o IRS” vs “baixámos a retenção”: como distinguir

A forma séria de avaliar uma descida de imposto é olhar para a colecta total apurada (o imposto anual calculado após taxas, escalões, deduções e benefícios). É isso que mede a carga fiscal efectiva.

A retenção é apenas o caminho. Pode estar mais perto ou mais longe do destino. Se a retenção desce e o reembolso desce quase na mesma proporção, o “alívio” foi sobretudo calendário, não redução estrutural.

5) O coração do embuste: a frase é verdadeira… no lugar errado

Dizer “os portugueses têm mais dinheiro no bolso” pode ser verdadeiro no momento exacto em que o recibo cai. Mas, como mensagem económica, é incompleto. Em sede de IRS, o bolso não é um sítio; é um intervalo temporal.

A política sabe isto e explora-o: privilegia a sensação imediata, empurra o acerto para a estação seguinte e chama “medida fiscal” ao que, muitas vezes, é apenas gestão de percepção.

6) Como o cidadão desarma a magia (sem gritar, só com contas)

  • Compare, de ano para ano, a colecta apurada (não apenas a retenção).
  • Compare o total anual retido com o reembolso/pagamento final: aí está a verdade do “alívio”.
  • Desconfie de “meses milagrosos”: o IRS não se mede ao soluço.
  • Quando ouvir “baixámos impostos”, procure o detalhe: taxas/escalões ou apenas tabelas de retenção?

Epílogo: o bolso, o ano e a dignidade

Um país adulto não precisa de propaganda fiscal. Precisa de previsibilidade, transparência e respeito por quem trabalha e por quem já trabalhou toda uma vida. O resto é teatro: um teatro onde a bilheteira abre todos os meses e o acerto chega, pontual, quando já ninguém está a olhar.

Referências (para consulta)
  1. Diário da República — Despacho n.º 236-A/2025 (tabelas de retenção para 2025).
  2. Diário da República — Despacho n.º 8464-A/2025 (tabelas para Agosto–Setembro de 2025).
  3. Portal das Finanças/AT — Tabelas de Retenção do IRS (2025 por períodos).
  4. CGD / Saldo Positivo — Retenção na fonte: o que é e como se calcula (explicação do conceito como adiantamento).
  5. Portugal.gov — Descida adicional de IRS para 2025 (anúncio e enquadramento).
🌌 Fragmentos do Caos: BlogueEbooksCarrossel

Francisco Gonçalves, com mais de 40 anos de experiência em software, telecomunicações e cibersegurança, é um defensor da inovação e do impacto da tecnologia na sociedade. Além da sua actuação empresarial, reflecte sobre política, ciência e cidadania, alertando para os riscos da apatia e da desinformação. No seu blog, incentiva a reflexão e a acção num mundo em constante mudança.

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