Em memória do meu pai, Augusto, homem da linha
Em memória do meu pai, Augusto, homem da linha
Meu querido pai Augusto, escrevo-te estas linhas como quem volta a sentar-se contigo à beira da Linha da Beira Baixa, a ouvir, lá ao fundo, o rumor do comboio e, cá perto, o silêncio teimoso da terra.
Não sei se isto é oração, conversa ou apenas um acto de amor tardio. Sei só que é a minha forma de te dizer, diante do mundo: obrigado por me teres ensinado a ser homem, num país que tantas vezes parece querer o contrário.
Chefe de lanço: um título pequeno, uma responsabilidade imensa
Foste, a vida inteira, chefe de lanço de via na CP – Companhia dos Caminhos de Ferro de Portugal.
Um título discreto, desses que não abrem telejornais, mas que carregam nos ombros uma responsabilidade que não cabe em currículo nenhum. Enquanto outros falavam de “progresso” em gabinetes, tu caminhavas quilómetros de linha, sol e chuva, atento a cada travessa, cada parafuso, cada fenda na alma do carril.
Sabias que um pequeno erro não era apenas metal partido: eram vidas. E essa consciência silenciosa fez de ti aquilo que mais admiro num ser humano: um profissional inteiro, um homem inteiro.
O teu universo tinha ferramentas, não “powerpoints”; horários de comboios, não “agendas estratégicas”; responsabilidade verdadeira, não frases treinadas para relatórios encadernados.
A tua ética foi a minha primeira escola
Cresci a olhar para ti como quem olha para um farol sem saber o nome das coisas. Só mais tarde percebi que, nesse homem de mãos gastas e olhar manso, estava condensado tudo aquilo que hoje me faz levantar a voz
contra a mediocridade deste país: rigor, decência e amor sem espectáculo.
Sem cátedras, sem teorias, ensinaste-me que:
- palavra dada é contrato sagrado;
- trabalho bem feito não precisa de palmas, precisa de consciência tranquila;
- honestidade não é qualidade “extra”, é o mínimo exigível;
- mandar não é gritar, é dar o exemplo primeiro.
Se hoje escrevo contra a corrupção, contra a mediocridade instalada, contra o conforto cúmplice, é porque a minha primeira escola de ética foste tu, pai. O resto é apenas a continuação,
em palavras, daquilo que vi, ano após ano, na forma como vivias e trabalhavas.
Alcains, Caria, Malpique, Belmonte-gare: uma geografia de amor e dever
A nossa vida de família foi feita ao ritmo da ferrovia Alcaibs, Caria, Malpique, Belmonte gare.
Cada promoção tua na CP era mudança de paisagem, de escola, de amigos. E, ainda assim, nunca te ouvi dizer “coitado de mim”. Para ti, havia trabalho a fazer, linha para cuidar, família para proteger. O dever vinha primeiro; as queixas, se existiam, eram queimadas em silêncio antes de chegarem à mesa do jantar.
Hoje olho para trás e percebo que a nossa instabilidade aparente era, afinal, uma construção sólida: eu crescia a ver um pai que não fazia teatro, fazia o que tinha de ser feito. Aprendi contigo que dignidade não é ruído: é consistência.
A doença não apagou a tua bondade
O teu corpo foi resistente durante quase toda a tua vida longa. No fim, foi o cérebro — esse traidor silencioso — que te atacou de forma súbita e cruel. Doeu-me ver a tua lucidez a ser ferida, como se a vida, ingrata, tentasse roubar-te no final aquilo que sempre foi o teu património mais precioso: a clareza.
Mesmo assim, algo não cedeu: a tua bondade. A ternura nos gestos, a doçura no olhar, essa forma simples de estares presente sem impor nada. A doença mexeu na memória, mas não conseguiu corromper o que eras por dentro. E é isso que eu escolho guardar: não o declínio, mas a luz.
O teu nome como acto de resistência
Num país que tantas vezes glorifica espertalhões bem vestidos, carreiras paralelas e poder sem serviço, a tua memória, pai, é o meu acto de resistência íntima. Quando escrevo contra a corrupção, contra o compadrio, contra a cobardia, sei que não estou sozinho: estás tu, ao meu lado, de pé junto à linha, com o mesmo olhar atento de sempre.
Para muitos, “Augusto” será apenas um nome. Para mim, é código de honra.
É o lembrete de que houve, neste país, homens que cumpriram o seu dever sem precisarem de palco, sem precisarem de fotografias, sem pedirem agradecimentos.
que trabalhou honestamente na CP, caminhou a Linha da Beira Baixa com rigor e silêncio, e deixou ao filho o único legado que importa: um código de decência que não se vende nem se negocia.”
Enquanto eu escrever, não estarás ausente
Esta crónica não é um adeus. É um presente contínuo. Enquanto eu tiver forças para escrever, o teu nome continuará vivo nas entrelinhas de tudo o que faço: na recusa da mentira organizada, na luta contra a mediocridade, na teimosia em acreditar que este país pode ser melhor do que aquilo em que o transformaram.
Meu pai, meu Augusto, se há algo que eu possa prometer-te hoje, é isto:
continuarei a caminhar ao longo da linha — não já da via férrea, mas da linha ética —
tentando, à minha maneira, impedir que este país descarrile de vez.
Francisco Gonçalves
Fragmentos do Caos, em memória do meu pai Augusto, homem de linha, homem inteiro.


