Arquivamento: quando a Justiça se inclina perante o Poder
BOX DE FACTOS
- Averiguação preventiva ao caso Spinumviva foi instaurada a 12 de Março
- Visado: Luís Montenegro, Primeiro-Ministro de Portugal
- Empresa em causa passou para os filhos do visado
- Decisão final: arquivamento por inexistência de ilícito criminal
- Tempo decorrido: mais de nove meses
Arquivamento: quando a Justiça se inclina perante o Poder
“Arquivamento”. A palavra caiu pesada, mas previsível, como uma pedra lançada num lago já sem ondas.
A Procuradoria-Geral da República decidiu arquivar a averiguação preventiva ao caso Spinumviva, empresa entretanto colocada nas mãos dos filhos de Luís Montenegro, Primeiro-Ministro em funções.
Segundo o comunicado oficial, “os elementos recolhidos conduziram à conclusão de não existir
notícia do referido crime, nem perigo da sua prática estar a ocorrer”.
Não houve crime. Não houve perigo. Não houve sequer suspeita suficiente para atravessar a soleira de um inquérito.
A coreografia do arquivamento
Recordemos o ritual. A averiguação foi anunciada publicamente — não por transparência genuína,
mas por “interesse público”, dada a qualidade do visado.
Durante meses, o país aguardou. Comentadores falaram. Juristas dividiram-se.
E, lentamente, o processo mergulhou naquele silêncio espesso que só os corredores do poder conhecem.
Nove meses depois — o tempo simbólico de uma gestação — nasce o veredicto:
nada existe, nada existiu, nada merece continuidade.
É o arquivamento como parto institucional: gera-se apenas vazio, mas com selo oficial.
Justiça para ricos, pedagogia para pobres
Para o cidadão comum, uma suspeita basta para anos de inquéritos, escutas, julgamentos mediáticos,
vidas suspensas. Para o poderoso, exige-se o impossível: a prova absoluta antes mesmo da investigação.
Aqui, a justiça não atua como balança, mas como porteiro seletivo.
Pergunta primeiro quem bate à porta. Se for alguém do topo, abre-se um sorriso jurídico
e fecha-se o processo.
O detalhe que nunca é detalhe
Curiosamente, enquanto se arquiva o presente, discute-se o futuro: a PGR quer limitar o acesso público às averiguações preventivas.
Traduzindo: menos escrutínio, menos luz, menos incómodo.
Não é apenas um arquivamento. É uma mensagem.
Diz aos poderosos: o sistema protege-vos.
E diz aos cidadãos: habituem-se.
Conclusão: o país do despacho final
Portugal não sofre de falta de leis. Sofre de excesso de hierarquias invisíveis.
A justiça continua a ser um edifício solene onde nem todos entram pela mesma porta —
e onde alguns nunca chegam sequer ao átrio.
O arquivamento não encerra o caso Spinumviva. Apenas o transfere para o arquivo maior da democracia portuguesa:
aquele onde se guardam as oportunidades perdidas de sermos um país adulto.
Fragmentos do Caos
Coautoria editorial: Augustus


