A Implosão Americana: Quando o Império se torna o seu próprio inimigo
BOX DE FACTOS
- Desde o regresso à presidência em 2025, Donald Trump e aliados têm lançado um “devastador ataque à democracia americana”, visando checks and balances e direitos civis. 0
- Ex-responsáveis de segurança nacional alertam que os EUA estão “numa trajectória rumo ao autoritarismo”, com recuo democrático acelerado. 1
- Índices internacionais classificam hoje os EUA como democracia em recuo (“backsliding”), chegando a usar o termo “anocracia” após o ataque de 6 de Janeiro de 2021. 2
- A segunda presidência Trump reforçou o poder executivo, atacou o Estado de direito e descredibilizou instituições de fiscalização, incluindo justiça e media. 3
- O impacto global inclui erosão do soft power americano, desconfiança entre aliados e incentivo a regimes autoritários em várias regiões. 4
A Implosão Americana:
Quando o Império se torna o seu próprio inimigo
Um império em guerra consigo próprio
O que vemos hoje na América não é apenas um ciclo político ruidoso. É uma guerra civil de baixa intensidade, travada no interior das instituições, dos media, das universidades, dos tribunais, das igrejas e das famílias. Não há tanques nas ruas – há timelines incendiadas. Não há comandos a assaltar palácios – há exércitos de advogados, lobistas, comentadores e bots a bombardear diariamente o espaço público.
Donald Trump não é a origem de todos os males dos EUA. Ele é, antes, o precipitado químico de décadas de desigualdade extrema, guerras intermináveis, captura económica do sistema político e frustração social acumulada. Mas é também o acelerador perfeito: onde havia fissuras, ele abre crateras; onde havia desconfiança, ele instala ódio; onde havia crítica, ele semeia vingança. 5
O presidente que governa pelo caos
Trump domina pela entropia. O caos não é acidente, é método de governação. Cada crise fabricada é um holofote que o mantém no centro do palco. Hoje é a ameaça de perseguir opositores por “traição” ou “sedição”, amanhã é o insulto a juízes, depois a deslegitimação da imprensa ou o ataque a procuradores que investigam os seus aliados. 6
O resultado é uma erosão lenta, quase imperceptível a olho nu, mas devastadora: a ideia de que as instituições são árbitros neutros vai sendo substituída pela narrativa de que tudo é “politizado”, “corrupto”, “inimigo do povo”. Quando o presidente transforma o Estado num campo de batalha pessoal, cada órgão de soberania é reduzido a duas categorias: útil ou descartável.
Democracia em recuo: da República à anocracia
Há décadas que investigadores acompanham o estado da democracia americana. Nos últimos anos, os relatórios deixaram de ser exercícios académicos e passaram a ser relatórios de sinistro. O país que se vendia como farol da democracia liberal é hoje citado em estudos sobre backsliding, retrocesso democrático e risco de autoritarismo. 7
A erosão faz-se em múltiplas frentes: supressão de voto em bairros pobres e minorias, manipulação partidária de círculos eleitorais, captura do Supremo Tribunal, uso abusivo de decretos presidenciais, ataques a órgãos de fiscalização, interferência sobre investigações judiciais, tentativas de reescrever narrativas sobre o ataque de 6 de Janeiro de 2021 para absolver os instigadores. Em vez de reforçar as defesas constitucionais, Trump testa-as até à exaustão, como quem mede a espessura de um gelo antigo para saber onde pode finalmente quebrar. 8
O culto do líder e a morte lenta da verdade
Qualquer democracia vive de desacordo. Mas o desacordo saudável exige um terreno mínimo comum: factos partilhados, confiança mínima em instituições, aceitação de resultados eleitorais, noção de limites. O trumpismo destrói esse terreno comum. A verdade passa a ser uma variável de conveniência: se ajuda o líder, é verdade; se o contraria, é “caça às bruxas”.
Programas de opinionismo televisivo, rádios, redes sociais e plataformas conspirativas funcionam como câmaras de eco onde a realidade é dobrada até encaixar na fantasia. O líder nunca erra, nunca mente, nunca perde – é sempre vítima de uma cabala. É assim que se constrói o culto da infalibilidade, indispensável a qualquer regime com vocação autoritária. A mentira deixa de ser apenas um instrumento; torna-se um clima permanente em que tudo é nebuloso, excepto a figura do chefe.
Economia em modo casino, sociedade em modo ruleta
No plano económico, a narrativa oficial fala de crescimento, empregos, patriotismo industrial e “America First”. Mas bastam alguns relatórios para ver o avesso do cartaz: cortes em apoios à democracia e direitos humanos no exterior, captura do Estado por interesses corporativos, políticas de curto prazo que sacrificam sustentabilidade ambiental e estabilidade global em nome de lucros imediatos. 9
A América de Trump funciona como um casino dourado: luzes intensas, música alta, a promessa constante de que “toda a gente pode ganhar”. O problema é que as regras são escritas por uma minoria ínfima – e a casa ganha quase sempre. Quem sai a perder é a classe média, exaurida por dívidas, desigualdade obscena, serviços públicos em erosão e uma cultura de precariedade permanente. A implosão começa aqui: quando o contrato social deixa de existir, o país torna-se apenas um mercado gigante de corpos e dados em circulação.
Do farol da democracia ao foco de instabilidade global
O colapso interno dos EUA não é um assunto doméstico. Num mundo interligado, a crise americana é um sismo geopolítico. A erosão do soft power, a instabilidade nas alianças, a viragem para políticas externas erráticas e transaccionais, o desmantelamento de programas de apoio à democracia noutros países – tudo isso abre espaço para outros actores preencherem o vazio, muitas vezes com modelos abertamente autoritários. 10
Quando Washington deixa de ser previsível, Pequim e Moscovo tornam-se alternativas pragmáticas para governos que já não procuram valores, apenas garantias de poder. O mundo assiste, perplexo, ao espectáculo de uma superpotência que gasta mais energia a combater-se a si mesma do que a construir qualquer futuro colectivo. A implosão interna converte-se, assim, em explosão de instabilidade global.
Um país prisioneiro do seu próprio espelho
Há uma tragédia quase literária nisto tudo. Os Estados Unidos foram, durante décadas, o espelho onde muitas sociedades se olhavam para imaginar o futuro: direitos civis, avanços tecnológicos, universidades de excelência, cultura vibrante, uma promessa – ainda que desigual – de mobilidade social. Hoje, o espelho está rachado. Em vez de inspiração, devolve ao mundo a imagem de um país dividido, exausto, armado até aos dentes e governado por um homem que se alimenta do conflito como um pirómano se alimenta de incêndios.
Trump não segura apenas o fósforo – ele é o fogo que precisa de novas chamas todos os dias para não se apagar do imaginário colectivo. Enquanto isso, milhões de americanos que não se revêem no trumpismo tentam defender, com recursos limitados, o que resta do ideal democrático. Esse é o paradoxo: a mesma nação que exportou ao mundo discursos sobre direitos humanos luta, agora, para evitar que a sua própria Constituição se torne mera peça decorativa num museu de memórias.
Epílogo: a implosão não é destino, mas aviso
Dizer que Trump está a implodir os EUA é reconhecer que um homem e o seu movimento cavalgam forças profundas de decadência. Mas também é fazer um aviso a todas as outras democracias, Portugal incluído: o que hoje vemos na América é um espelho do que pode acontecer a qualquer país que trate a democracia como garantia eterna, e não como construção frágil a cuidar todos os dias.
A implosão americana não é apenas um fim possível; é sobretudo um aviso antecipado. Cada vez que normalizamos o ódio, relativizamos o autoritarismo, aceitamos ataques ao Estado de direito como “exageros pontuais”, abrimos mais uma fenda no edifício comum. Um dia, essas fendas juntam-se – e o colosso cai. Não por bombardeamento externo, mas por decisão interna de desistir de ser melhor do que os seus piores instintos.
Talvez, daqui a muitos anos, um estudante leia sobre estes tempos e pergunte: “Em que momento perceberam que o império se tinha tornado o seu próprio inimigo?”. A resposta honesta será esta: percebemos cedo. Apenas não houve coragem suficiente, nem dentro nem fora, para travar a tempo. E isso, mais do que um destino, é uma escolha. Ainda reversível. Ainda.
na esperança teimosa de que o colosso acorde antes de desabar por completo sobre o mundo que ainda o rodeia.


