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Seattle, licenças perpétuas e o Estado refém: o método invisível do lock-in tecnológico

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BOX DE FACTOS

  • Desde pelo menos 2011, autarcas portugueses foram convidados a visitar a sede da Microsoft em Seattle, com alojamento e refeições pagos pela empresa e viagens suportadas por câmaras municipais.
  • Investigações jornalísticas revelaram que várias autarquias que aceitaram estas viagens contrataram, nos anos seguintes, milhões de euros em licenças e serviços Microsoft, muitas vezes por ajuste directo.
  • Em 2017, a Procuradoria-Geral da República confirmou estar a recolher elementos sobre as viagens oferecidas a titulares de cargos públicos.
  • Em 2024, pelo menos um presidente de câmara foi constituído arguido por eventual recebimento indevido de vantagem relacionado com estas deslocações.
  • Em 2025, o Ministério Público arquivou o inquérito, considerando as viagens como acção de marketing profissional, sem prova de relação de favor juridicamente punível.
  • Arquivamento judicial não significa ausência de problema ético, nem resolve a dependência estrutural do Estado de fornecedores monopolistas.

Seattle, licenças perpétuas e o Estado refém:
o método invisível do lock-in tecnológico

Quando um autarca viaja para Seattle em classe económica e volta com licenças perpétuas e contratos milionários na bagagem, o problema não é o avião: é o cativeiro tecnológico que se instala, discreto, muito para lá da fotografia oficial e do despacho de arquivamento.

Ninguém é ingénuo ao ponto de acreditar que gigantes tecnológicos convidam autarcas a atravessar o Atlântico por puro espírito filantrópico. As viagens à sede da Microsoft, com hotel e refeições oferecidos, não são peregrinações espirituais ao templo da inovação: são ferramentas de venda sofisticadas, calibradas ao milímetro para moldar decisões de compra pública durante anos.

Os factos conhecidos são teimosos: desde o início da década passada, autarcas de vários partidos viajaram a Seattle, com custos repartidos entre câmaras e multinacional. Pouco depois, começaram a surgir contratos de licenciamento e serviços em série, muitos deles por ajuste directo, somando milhões de euros em despesa pública em software proprietário que sela, com selo digital, a dependência. As notícias estão aí, arquivadas; os contratos também.

Anos mais tarde, a justiça acorda: buscas, autarcas constituídos arguidos, suspeitas de recebimento indevido de vantagem. O guião é conhecido. E o epílogo, também: despacho de arquivamento, com a conclusão de que as viagens tinham cariz profissional, que eram acções de marketing, que não se provou a intenção de criar uma relação de favor punível. Do ponto de vista jurídico, o caso morre. Do ponto de vista ético e estratégico, o problema fica intacto.

O bilhete para Seattle não vem sozinho

Uma viagem de trabalho não é crime. Um pequeno-almoço com apresentações técnicas não é crime. Um jantar com pitch de “smart city” também não é crime. O que está em causa não é o hotel de três ou quatro noites: é o ambiente de prestígio, exclusividade e proximidade que se constrói à volta de decisores que controlam orçamentos multimilionários.

Em Lisboa, em Seattle ou em qualquer lado, o método é sempre o mesmo: colocar o decisor dentro da narrativa do fornecedor – rodeado de slides, números, palavras mágicas (“inovação”, “transformação digital”, “cidades inteligentes”) – enquanto se semeia a ideia de que não há alternativa séria. É assim que se fabrica o lock-in: primeiro na cabeça, só depois no contrato.

O resultado final raramente aparece escrito no convite: contratos de licenciamento em massa, muitas vezes perpétuos ou de longa duração; dependência de formatos proprietários que amarram documentos, bases de dados e processos; integração profunda com infra-estruturas que tornam a saída quase impossível sem dor orçamental e política. É a velha máxima do revendedor de drogas aplicada ao software: a primeira dose vem com sorriso e desconto.

Arquivar o processo, manter a armadilha

Quando o Ministério Público arquiva o inquérito, afirma apenas isto: não se provou, com o nível de exigência penal, que houve crime. Não diz que as viagens foram prudentes. Não diz que os contratos foram tecnicamente necessários. Não diz que o modelo de relacionamento entre empresas e Estado é saudável. Limita-se a cumprir o seu papel jurídico. E, nesse ponto, a discussão acaba nos tribunais – mas devia começar na praça pública.

A questão essencial não é “se o autarca X deveria ser condenado”. A questão essencial é esta: um Estado pobre, tecnologicamente dependente e politicamente frágil pode permitir-se este género de sedução corporativa? Pode continuar a aceitar viagens, patrocínios, fóruns exclusivos e programas embrulhados em marketing como se fossem inevitáveis, enquanto se compromete, por décadas, com plataformas que não controla?

Arquivar o processo pode ser juridicamente correcto. Mas arquivar a reflexão política e estratégica sobre a dependência tecnológica é uma forma de suicídio lento. A cada viagem oferecida, a cada licenciamento perpétuo assinado sem escrutínio, o Estado abdica de um pedaço da sua autonomia – e nem sequer precisa de corrupção clássica para isso. Basta conforto, rotina e preguiça intelectual.

O lock-in como política de Estado não declarada

Durante décadas, Portugal aceitou, quase sem debate, uma política de facto: tornar-se um cliente cativo de meia dúzia de gigantes de software e consultoria. Não foi discutido em Assembleia da República, não constou de programas eleitorais, não passou por referendo. Aconteceu por inércia, por deslumbramento e por ignorância técnica sistemática ao nível da decisão política.

Em vez de exigir interoperabilidade real, formatos abertos, diversidade de fornecedores e planos de saída bem definidos, o Estado foi assinando cheques e renovando subscrições. Em vez de construir equipas técnicas independentes, capazes de dizer “não” ao brilho do marketing, confiou em pareceres alinhados com o fornecedor dominante. Em vez de usar o seu poder de compra para mudar o mercado, aceitou ser moldado por ele.

O resultado está à vista: sistemas críticos que só funcionam com um fornecedor específico; escolas, tribunais, hospitais e autarquias presos a suites de produtividade e infra-estruturas que ninguém ousa questionar; qualquer tentativa de migração vista como “risco político” inaceitável. O lock-in tecnológico converte-se, assim, em lock-in democrático: o povo paga, mas já não decide o rumo.

Blindar o futuro: da ingenuidade à soberania tecnológica

O problema não se resolve com um bode expiatório, nem com mais um inquérito que acaba arquivado. Resolve-se com regras claras e coragem política. Algumas medidas são tão óbvias que dói perceber que ainda não existem:

  • Transparência total de hospitalidade: todas as viagens, convites, alojamentos e refeições oferecidos por fornecedores a decisores públicos devem ser declarados e publicados, em tempo quase real, num portal acessível a qualquer cidadão.
  • Concursos com critérios técnicos verificáveis: nada de “solução líder mundial” como argumento. Exigir métricas concretas de desempenho, segurança, interoperabilidade e custo total de posse.
  • Obrigatoriedade de plano de saída: nenhum contrato relevante sem um cenário claro de migração para outro fornecedor ou tecnologia, com custos estimados e prazos definidos.
  • Preferência activa por formatos abertos: documentos, dados e interfaces baseados em normas públicas, que permitam a coexistência de soluções distintas ao longo do tempo.
  • Equipa técnica independente do calendário eleitoral: um corpo de peritos em software, segurança e arquitectura de sistemas que não mude ao sabor dos governos e possa dizer “não” quando a política quer apenas a fotografia fácil.
  • Auditorias periódicas ao licenciamento: saber exactamente quantas licenças existem, se são usadas, se há redundâncias absurdas e quanto custam por utilizador efectivo.

Isto não é guerra a uma empresa específica; é uma tentativa de devolver ao Estado a capacidade de escolher, negociar e mudar de rumo sem sofrer chantagens tecnológicas e económicas. Soberania não é apenas ter bandeira e hino: é poder desligar um fornecedor e ligar outro sem destruir a máquina administrativa.

Epílogo: a viagem que falta fazer

Os aviões para Seattle já descolaram e aterram há anos. Alguns processos foram abertos, outros arquivados. Os autarcas seguiram com as suas carreiras, a Microsoft continua a ser um actor global poderoso, os contratos mantêm-se. O capítulo judicial está, por agora, arrumado em prateleira. Mas a viagem verdadeiramente urgente ainda não começou.

É a viagem interior de um país que precisa de passar de cliente encantado a adquirente adulto. Um país que tem de aprender a olhar para o brilho dos painéis interactivos, dos dashboards e das nuvens mágicas e perguntar: “quanto custa sair daqui, se um dia for preciso?”. Um país que tem de aceitar que independência tecnológica não se compra numa conferência em Seattle – constrói-se, com paciência, exigência e algum incómodo perante quem sempre lucrará mais com a nossa dependência do que com a nossa liberdade.

Até lá, continuaremos a ver viagens, jantares, brindes e contratos, tudo dentro da lei, tudo arquivado com correção. Mas cada licenciamento perpétuo assinado sem pensamento crítico é mais um prego discreto na soberania de um Estado que, um dia, poderá descobrir que não foi a corrupção que o derrotou – foi a ingenuidade tecnológica.

Escrito por Augustus Veritas Lumen, em co-autoria crítica com Francisco Gonçalves.

Série: Contra o Teatro da Mediocridade — crónicas sobre a captura silenciosa do Estado por interesses corporativos.

Fontes :

Fontes principais consultadas sobre as viagens a Seattle, a investigação e o arquivamento do inquérito: reportagens do Sol sobre as viagens de autarcas à Microsoft e contratos subsequentes e notícias recentes sobre a constituição de arguidos e o posterior arquivamento pelo Ministério Público em 2025.

🌌 Fragmentos do Caos: BlogueEbooksCarrossel

Francisco Gonçalves, com mais de 40 anos de experiência em software, telecomunicações e cibersegurança, é um defensor da inovação e do impacto da tecnologia na sociedade. Além da sua actuação empresarial, reflecte sobre política, ciência e cidadania, alertando para os riscos da apatia e da desinformação. No seu blog, incentiva a reflexão e a acção num mundo em constante mudança.

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