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Marcelo, os Sem-Abrigo e o Decoro Perdido da Democracia Portuguesa

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Marcelo, os Sem-Abrigo e o Decoro Perdido da Democracia Portuguesa










BOX DE FACTOS

  • Em 2018, o Presidente da República anunciou o objectivo de reduzir drasticamente as situações de sem-abrigo até 2023, falando mesmo em as tornar residuais.
  • Dados oficiais indicam que o número de pessoas em situação de sem-abrigo em Portugal mais do que duplicou desde o final da década de 2010 até 2023.
  • Lisboa concentra mais de um quarto de todas as pessoas sem-abrigo, apesar de sucessivos planos, programas, grupos de trabalho e promessas públicas.
  • Passada quase uma década de “magistério de influência”, o contraste entre a retórica e a realidade exposta nas ruas tornou-se obsceno.

Marcelo, os Sem-Abrigo e o Decoro Perdido da Democracia Portuguesa

Prometeu-se um país sem pessoas a dormir em caixas de cartão; ganhou-se um país com o dobro dos corpos encostados a portas de bancos, escadarias de igrejas e vãos de prédios públicos. Entre a palavra solene e a calçada fria abriu-se um abismo de decoro que já ninguém consegue disfarçar com sorrisos televisivos.

A frase que ficou pendurada nas arcadas de Lisboa

Há frases que se colam à pedra da cidade como grafitti moral. Quando o Presidente da República anunciou, nos primeiros anos do seu mandato, que era preciso acabar com as situações de sem-abrigo até 2023, muita gente quis acreditar. Era uma promessa que soava bem num país cansado de olhar para o chão para não ver corpos estendidos em sacos-cama.

O problema não está apenas no facto de a promessa não ter sido cumprida. O problema é a distância abissal entre o uso solene da palavra “acabar” e o que, na prática, se fez – ou se deixou de fazer.
Quando um Presidente se coloca ao lado de um Governo e transforma uma meta destas em “bandeira de Portugal”, aquilo que está em causa já não é apenas política social. É decoro institucional.

Quando as estatísticas gritam mais alto do que os discursos

Os números não têm afectos. Não posam para selfies, não abraçam, não distribuem sopas em frente às câmaras. Limitam-se a registrar a realidade nua e crua: em poucos anos, o número de pessoas em situação de sem-abrigo em Portugal mais do que duplicou. Não se trata de um pequeno desvio, é um falhanço estrutural.

Enquanto se falava em metas para 2023, as ruas foram enchendo. Lisboa, Porto, outras cidades e até concelhos do interior começaram a registar contagens que já não cabem nos discursos redondos. Por trás de cada número há uma história de ruína: rendas incomportáveis, empregos precários, doenças, dependências, falências pessoais e institucionais acumuladas.

A pergunta que fica a ecoar, dura e simples, é esta: como é possível que, com mais fundos, mais programas, mais planos e mais “estratégias nacionais”, tenhamos hoje mais gente a dormir na rua do que quando a promessa foi feita?

O “magistério de influência” em modo sessão fotográfica

Ao longo destes anos, vimos o Presidente multiplicar-se em visitas, almoços, jantares solidários, noites na rua e gestos simbólicos. Numa democracia minimamente saudável, não haveria mal nenhum em algum simbolismo. Mas quando os símbolos passam a servir de substituto à mudança efectiva, transformam-se em cortina de fumo moral.

O chamado “magistério de influência” foi sendo usado como se fosse um verniz milagroso: uma palavra aqui, uma visita ali, um abraço acolá. Entretanto, a realidade aproximou-se perigosamente do caricatural: um Presidente que afirmava querer “acabar” com as situações de sem-abrigo preside, dez anos depois, a um país com mais corpos na rua, mais barracas improvisadas, mais pessoas empurradas para o limite.

Quando isto acontece, não é apenas a política social que falha. Falha a própria noção de responsabilidade pública. Falha a linha invisível que deveria ligar a palavra do mais alto representante do Estado à realidade concreta da vida das pessoas.

A democracia do espectáculo e a miséria em segundo plano

Portugal habituou-se a uma democracia de espectáculo permanente. Abre-se a televisão e lá está o Presidente, omnipresente, comentando tudo, abraçando todos, distribuindo sermões e afectos, como se o país fosse um programa de domingo à tarde. O problema é que, enquanto se faz este circo de proximidade, a distância social cresce em silêncio.

Os sem-abrigo tornam-se, assim, figurantes trágicos neste teatro nacional. Servem para cenários de Natal, campanhas de inverno, directos televisivos ao frio.
Passado o momento, ficam no mesmo passeio, deitados sobre o mesmo cartão, à porta das mesmas instituições que, de dia, juram que o problema está a ser enfrentado com “planos integrados”.

A verdade é brutal: esta democracia já não tem vergonha suficiente. Se tivesse, uma promessa falhada desta dimensão teria provocado uma onda de indignação nacional, debates a sério no Parlamento, demissões, revisões profundas de políticas públicas. Em vez disso, temos uma sociedade que aprendeu a viver com pessoas a dormir na rua como quem vive com o mobiliário urbano.

Dobro dos sem-abrigo, metade da vergonha

Quando se olha para a última década, o retrato é difícil de engolir: mais dinheiro na economia, mais fundos europeus, mais retórica sobre inclusão
social
– e, em paralelo, mais pessoas empurradas para a rua, mais gente a perder casa, trabalho e dignidade.

Não se trata apenas de “falhas de implementação” ou “complexidade do fenómeno”. Trata-se de um sistema político que só sabe realmente mobilizar-se para aquilo que rende votos, manchetes ou negócios. Os sem-abrigo não são um lobby, não contratam agências de comunicação, não aparecem em jantares de campanha. Por isso mesmo, ficam sempre para depois.

O resultado está à vista: quem prometeu “acabar com as situações de sem-abrigo” deixa atrás de si um país com mais corpos na rua e um traço fundo na memória colectiva – o traço da falta de decoro. Porque há falhanços que se explicam; mas há promessas que, quando são quebradas, revelam sobretudo que a palavra pública foi usada de forma leviana.

Não é caridade, é justiça: ou mudamos o jogo, ou o jogo acaba connosco

A questão central já não é Marcelo, nem apenas este ou aquele Governo. A questão é um regime que aceitou como “normal” ter milhares de pessoas a dormir na rua, enquanto se exibe crescimento do PIB, recordes de turismo e fotografias eufóricas com fundos europeus.

Acabar com o sem-abrigo não é um gesto de caridade cristã, é um imperativo de justiça republicana. Significa mexer em estruturas: mercado de habitação, salários de miséria, sistemas de saúde mental abandonados, redes de apoio que são mais burocracia do que socorro. Significa assumir que ninguém deveria cair tão fundo sem que o Estado e a sociedade se atravessem no meio da queda.

Mas para isso é preciso mais do que afectos em directo. É preciso coragem política, planeamento sério, responsabilização efectiva.
É preciso que as palavras voltem a ter peso e consequência. É preciso, sobretudo, que os portugueses deixem de aceitar como inevitável o que é, em rigor, uma escolha colectiva: manter ou não manter milhares de pessoas a dormir na rua.

Epílogo: o dia em que a calçada falar mais alto do que Belém

Um dia, quando alguém escrever a crónica fria destes anos, talvez use uma frase simples: “Prometeu-se o fim dos sem-abrigo; entregou-se o dobro dos semabrigo. ” Entre estas duas metades de frase cabe toda a história de um país que se foi habituando a viver divorciado da sua própria consciência.

Até lá, as ruas continuarão a dizer a verdade que os discursos escondem. Cada saco-cama estendido à porta de um ministério, de um banco ou de uma igreja é um telegrama silencioso enviado à República: falhaste-nos. E enquanto não houver resposta à altura, qualquer promessa vinda de cima soa apenas a ruído de fundo.

Talvez o verdadeiro dia de mudança não seja aquele em que um Presidente promete outra vez “acabar” com o flagelo. Será, antes, o dia em que um povo inteiro decidir que não aceita mais viver numa democracia que fala de dignidade humana com lágrimas nos olhos… e o dobro dos sem-abrigo deitados na calçada.

Escrito por Francisco Gonçalves, em co-autoria com Augustus Veritas Lumen — Fragmentos do Caos, crónicas contra o teatro da mediocridade.

🌌 Fragmentos do Caos: BlogueEbooksCarrossel

Francisco Gonçalves, com mais de 40 anos de experiência em software, telecomunicações e cibersegurança, é um defensor da inovação e do impacto da tecnologia na sociedade. Além da sua actuação empresarial, reflecte sobre política, ciência e cidadania, alertando para os riscos da apatia e da desinformação. No seu blog, incentiva a reflexão e a acção num mundo em constante mudança.

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