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Lisnave e Setenave: a ascensão e queda da indústria naval portuguesa de grande porte

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BOX DE FACTOS

  • Em 1961 inicia-se a construção da Lisnave na Margueira, Almada; em 1967 entra em funcionamento como um dos maiores estaleiros de reparação naval do mundo.
  • A Lisnave chega a empregar perto de 10 mil trabalhadores e a reparar mais de uma centena de navios por ano durante o auge dos anos 70.
  • A Setenave é concebida para construção de superpetroleiros, entra em operação em meados de 1975, já depois do choque petrolífero e sob nacionalização.
  • A crise mundial dos superpetroleiros, a deslocalização da indústria para a Ásia, o peso da dívida e a entrada na CEE precipitam reestruturações, despedimentos e encerramentos.
  • O estaleiro da Margueira é desactivado no final de 2000; a actividade concentra-se na Mitrena (Setúbal). A Setenave é extinta enquanto grande estaleiro de construção pesada.

Lisnave e Setenave: como deixámos afundar o nosso arsenal de aço

Nas margens do Tejo e do Sado, Portugal chegou a ombrear com os gigantes mundiais da construção e reparação naval.
Hoje, onde antes rugiam guindastes e tochas de soldadura, discute-se urbanismo, “frentes ribeirinhas” e condomínios de luxo.
A história da Lisnave e da Setenave é a história de um país que teve um arsenal industrial e o deixou escorregar para o fundo.

A Margueira: quando o Tejo se tornou doca gigante

Corria o início dos anos 60 quando se decidiu erguer, na Margueira, em Cacilhas, um estaleiro que colocaria Portugal no mapa dos grandes centros de reparação naval.
A Lisnave nasce da convergência de capitais nacionais e estrangeiros, de experiência acumulada e de um objectivo claro: criar uma infraestrutura capaz de receber navios de grande porte, incluindo petroleiros de tonelagens que então pareciam quase mitológicas.

A doca gigante, operacional em 1967, transformou a margem sul do Tejo num cenário industrial impressionante: pórticos colossais, diques secos, filas de navios à espera de docagem, milhares de operários que enchiam de vozes e faíscas uma paisagem que hoje se imagina apenas em fotografias.
Em 1970, a Lisnave reparava perto de 150 navios por ano; era uma das maiores concentrações operárias do país e um símbolo do chamado “ciclo dourado” da industrialização tardia portuguesa.

Setenave: o sonho dos superpetroleiros

Mais a sul, no Sado, ergue-se a Setenave – Estaleiros Navais de Setúbal, pensada para outro patamar: não apenas reparação, mas construção de grandes cascos, secções e blocos de superpetroleiros.
O projecto é concebido ainda nos anos de euforia do transporte de crude, mas entra verdadeiramente em operação em meados de 1975, já depois do choque petrolífero de 1973–74 e com a empresa sob nacionalização.

Estaleiros da Setenave na Mitrena - memória industrial

Estaleiros da Setenave, Mitrena – um dos maiores complexos navais da Europa nos anos 70.

A Setenave entra assim na corrida mundial dos Very Large Crude Carriers exactamente no momento em que o mercado começa a encolher.
O mundo reavalia o modelo energético, os preços do petróleo disparam, as encomendas de superpetroleiros são canceladas ou renegociadas.
Em vez de um trampolim, a conjuntura converte a aposta num peso pendurado ao pescoço da economia portuguesa.

Crise internacional, dívida e conflito social

Tal como outros grandes estaleiros europeus, Lisnave e Setenave são apanhadas no vendaval da crise internacional da construção naval pesada.
O excesso de capacidade global, a concorrência crescente do Japão primeiro e da Coreia e outros países asiáticos depois,
e a redução estrutural da procura por superpetroleiros tornam inviável o modelo de crescimento que justificara os investimentos colossais.

No terreno, isto traduz-se em carteira de encomendas frágil, necessidade de manter infra-estruturas de custo fixo elevadíssimo e uma pressão constante para baixar salários e “ajustar” o quadro de pessoal.
Na Lisnave, a partir da segunda metade da década de 70, começa um processo agressivo de endividamento e reestruturação: não havendo crédito bancário fácil, a empresa chega a atrasar salários, endividando-se junto dos próprios trabalhadores.
Ao mesmo tempo, estes organizam-se e protagonizam algumas das lutas sociais mais intensas da história recente portuguesa.

Do “direito ao trabalho” à precariedade programada

Na Lisnave, a trajectória do pós-1974 é exemplar: dos comités de trabalhadores e da reivindicação do direito ao trabalho, passa-se gradualmente, ao longo das décadas seguintes, para um modelo de subcontratação massiva, reformas antecipadas e redução drástica do quadro permanente.
Em meados dos anos 80 e 90,
começa a tornar-se regra a presença de milhares de trabalhadores subcontratados,
enquanto o núcleo da empresa é comprimido até números simbólicos.

Na Setenave, o padrão é semelhante, mas com outra gravidade: uma empresa pensada para grandes séries de construção pesada nunca chega a consolidar um fluxo de encomendas que justifique a sua escala.
O Estado injecta capitais, redesenha planos, tenta encontrar parceiros internacionais, mas a maré estrutural está contra.
A combinação de dívida, pressão internacional contra ajudas de Estado e ausência de uma estratégia de longo prazo empurra o estaleiro para um lento naufrágio.

CEE, liberalização e a rendição sem batalha

Com a entrada de Portugal na CEE em 1986, o quadro muda ainda mais: as regras de concorrência e as limitações às ajudas estatais tornam politicamente difícil sustentar grandes estaleiros públicos cronicamente deficitários.
Em vez de se discutir seriamente uma estratégia europeia para manter capacidades industriais de sectores cruciais, a opção dominante é a mesma que vimos noutras áreas: fechar, reduzir, privatizar, reconverter em serviços.

Na prática, isto significou planos sucessivos de reestruturação, despedimentos colectivos, reformas antecipadas e a lenta agonia das grandes infra-estruturas.
A Margueira é desactivada no fim de 2000; a Lisnave concentra-se na Mitrena, em Setúbal, com um modelo orientado para reparações e manutenção, longe do gigantismo industrial de outrora.
A Setenave, enquanto projecto de construção naval pesada,
dissolve-se no nevoeiro contabilístico das décadas seguintes.

Memória, ruínas e a tentação da amnésia urbana

Hoje discute-se o futuro da Margueira em termos de frentes ribeirinhas, “requalificação urbana”, hotéis, condomínios e escritórios.
As grandes estruturas metálicas são ora vistas como obstáculo, ora como cenário exótico para renderização 3D.
Poucos documentos oficiais enfrentam de frente a questão essencial: o que significa, para um país periférico, ter destruído com tanta ligeireza capacidades de engenharia naval que demoraram décadas a construir?

A memória dos trabalhadores resiste em livros, relatórios, iniciativas académicas, projectos de história oral e associações locais.
Fala-se do barulho das prensas, do cheiro a solda e tinta, dos turnos nocturnos em que a doca gigante parecia uma cidade de aço iluminada.
Fala-se também da precariedade, dos salários em atraso, da dureza do trabalho e dos acidentes.
Tudo isso faz parte da verdade.
Mas nenhuma dessas memórias justifica o vazio estratégico que se seguiu.

Epílogo: navios que não se construíram

Lisnave e Setenave são mais do que capítulos fechados da história industrial.
São os navios que não se construíram, as tecnologias que não se dominaram, as cadeias de valor que não se consolidaram em solo português.
Quando hoje discutimos transição energética, renováveis, e novas rotas marítimas, é difícil não pensar no que significaria para o país
ter mantido uma forte indústria naval capaz de participar na construção de navios de nova geração.

O futuro não se constrói apenas com slogans de inovação e parques tecnológicos; constrói-se com aço, suor, conhecimento acumulado e estratégia.
Um dia, talvez, Portugal decida voltar a olhar para o rio e para o mar não como paisagem turística, mas como espaço industrial e tecnológico.
Nessa altura, as ruínas da Margueira e a memória de Setenave serão lembradas não como curiosidades do passado, mas como o aviso severo de que um país que abdica da sua indústria abdica também de parte da sua soberania.

Crónica escrita em co-autoria por Francisco Gonçalves e Augustus Veritas Lumen [AI], para o projecto Fragmentos do Caos, na série Contra o Teatro da Mediocridade.

Fontes e referências consultadas

Esta crónica é uma síntese interpretativa, baseada em documentação histórica, investigação académica e registos de imprensa sobre a evolução da indústria naval portuguesa, em particular os estaleiros ligados à Lisnave/Lusnave
e à Setenave, desde o período de expansão dos anos 60/70 até à crise estrutural e encerramento de grande parte da capacidade instalada.

  • Arquivo CUF / Lisnave – Brochuras e memórias institucionais sobre a história da Lisnave e dos estaleiros da Margueira e da Mitrena (incluindo a cronologia de expansão, investimento em docas secas e reestruturação pós-1974).
  • Lisnave – Estaleiros Navais de Lisboa – Sínteses históricas disponíveis em portais públicos e páginas institucionais, com destaque para a construção da grande doca da Margueira e o
    posterior foco na reparação naval em Setúbal.
  • Estudos e teses académicas sobre a indústria naval portuguesa e o papel da Setenave e da Lisnave na transição do modelo de industrialização dos anos 60/70 para o contexto de crise, nacionalizações, pactos sociais e reestruturações (com especial relevo para trabalhos produzidos na FCSH/NOVA e noutras universidades).
  • “Setenave – Revolução, Nacionalização, Privatização”, de Jorge Fontes – obra de referência que reconstrói o ciclo de vida da Setenave, a sua importância como símbolo de industrialização pesada em Setúbal e o processo de declínio, negociação social e encerramento.
  • Artigos de imprensa em jornais nacionais (como Diário de Notícias, Jornal de
    Negócios, Público, entre outros) sobre:

    • a crise da construção e reparação naval europeia a partir dos anos 80;
    • as lutas laborais na Lisnave e na Setenave;
    • os programas de reestruturação, despedimentos e reconversão profissional;
    • a transferência de actividade para a Mitrena e a situação dos estaleiros de Setúbal nas últimas décadas.
  • Testemunhos de trabalhadores e dirigentes recolhidos em entrevistas, reportagens e
    documentos de memória oral, que ajudam a compreender o impacto social da ascensão e da queda da grande indústria naval na Margueira, na Mitrena e na Península de Setúbal.
  • Estatísticas e relatórios oficiais sobre emprego industrial, exportações, carga de encomendas e apoios públicos à reestruturação dos estaleiros, bem como documentação comunitária relacionada com a política de concorrência e ajudas de Estado no sector naval.

Qualquer eventual imprecisão factual é da exclusiva responsabilidade do autor e resulta do esforço de síntese e interpretação crítica de um processo histórico complexo, que atravessa décadas de industrialização, conflito social, decisões políticas contraditórias e perda estratégica de capacidade produtiva em Portugal.

🌌 Fragmentos do Caos: BlogueEbooksCarrossel

Francisco Gonçalves, com mais de 40 anos de experiência em software, telecomunicações e cibersegurança, é um defensor da inovação e do impacto da tecnologia na sociedade. Além da sua actuação empresarial, reflecte sobre política, ciência e cidadania, alertando para os riscos da apatia e da desinformação. No seu blog, incentiva a reflexão e a acção num mundo em constante mudança.

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