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Como Portugal Deixou Morrer a Fábrica que Fazia Comboios

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BOX DE FACTOS
  • Fundada em 1943, na Amadora, como peça central do plano de industrialização pesada do Estado Novo, inicialmente focada em equipamentos hidromecânicos para barragens. 1
  • A partir dos anos 50 torna-se o principal construtor ferroviário português, com licença da norte-americana Budd para fabricar material circulante em aço inox canelado. 2
  • No auge, na década de 70, emprega cerca de 4.000 trabalhadores e exporta para Europa, África, América Latina e Ásia. 3
  • Anos 80–90: reestruturações sucessivas, entrada da ABB, criação do grupo SENETE e integração na ADtranz, transformam a fábrica de construtor integrado em simples unidade de montagem. 4
  • 2001: Bombardier compra a ADtranz; a SOREFAME passa a Bombardier Transportation Portugal. 5
  • 2004/2005: encerramento da unidade da Amadora, num contexto de sobrecapacidade europeia em material ferroviário e perda de encomendas nacionais – o fim de uma escola de metalomecânica pesada portuguesa. 6

SOREFAME: Como Portugal Deixou Morrer a Fábrica que Fazia Comboios

Durante décadas, a SOREFAME transformou aço em movimento e desenhou, a golpes de soldadura e engenho, o esqueleto ferroviário de um país periférico que sonhava ser moderno. Depois, em silêncio burocrático, foi fatiada, revendida e encerrada. O que aconteceu não foi apenas o fim de uma fábrica; foi o desmantelamento deliberado de uma capacidade industrial estratégica que Portugal nunca mais voltou a recuperar.

1. De barragens a comboios em aço canelado

A história começa em 1943, em plena Segunda Guerra Mundial, quando o regime de Salazar decide que precisa de uma indústria pesada capaz de acompanhar o plano de construção de barragens e de dar um ar de modernidade a um país atrasado. Nasce assim, na então Porcalhota (Amadora), a Sociedades Reunidas de Fabricações Metálicas, SOREFAME para os amigos — uma aglomeração de pequenas metalúrgicas sob a batuta do engenheiro Ângelo Fortes e com capital maioritariamente francês (Neyrpic). 7

Primeiro vieram as comportas, as estruturas colossais das barragens, a arte de domar água com aço. Depois, a partir dos anos 50, surge a viragem decisiva: Portugal compra carruagens em aço inoxidável à norte-americana Budd e, com elas, vem a patente e o know-how. A SOREFAME associa-se à Budd, recebe licença de fabrico e começa a produzir, na Amadora, carruagens em aço inox canelado — uma imagem que ainda hoje habita estações e memórias. 8

Nos anos 60 e 70, das naves da SOREFAME saem automotoras, locomotivas, vagões e carruagens para a CP, para o Metropolitano de Lisboa, para o futuro Metro do Porto, para redes ferroviárias em África, no Brasil, no Paquistão e na América Latina. 9 Era, em linguagem simples, o coração da produção ferroviária portuguesa. E era também uma escola de engenharia, metalomecânica pesada e ofícios qualificados que não se improvisam num fim-de-semana de “upskilling”.

2. O primeiro golpe: crise, revolução e gestão errática

A Revolução de 25 de Abril traz liberdade política, mas também uma turbulência económica que apanha a SOREFAME em cheio. O modelo de encomendas garantidas pelo Estado começa a baloiçar, os mercados externos tornam-se mais competitivos e a empresa entra numa fase de incerteza. A partir de meados dos anos 70, o crescimento abranda e dá lugar a uma longa travessia de conflitos laborais, oscilações de encomendas e decisões estratégicas contraditórias. 10

Ainda assim, a empresa sobreviveria se tivesse havido um verdadeiro plano industrial nacional, articulando CP, Metros, exportação e capacidade tecnológica. Em vez disso, seguiu-se o que Portugal sabe fazer demasiadas vezes: improviso político, remendos financeiros, ausência de rumo e, aqui e ali, a tentação de transformar um ativo estratégico em moeda de troca para negócios internacionais.

3. Privatizações em cadeia: da SENETE à ABB, da ADtranz à Bombardier

Nos anos 80 e 90, a SOREFAME entra na era das siglas globais. Reestrutura-se com a MOMPOR para formar a Sociedade de Montagens Metalomecânicas (SMM); depois, SMM, SOREFAME, MAGUE e SEPSA fundem-se no grupo SENETE, onde a suíça ABB passa a deter uma fatia importante do capital, chegando aos 70 % em meados da década de 90. 11

A seguir, a ABB funde a sua área ferroviária com a da Daimler-Benz, criando a ADtranz. Poucos anos depois, essa ADtranz é vendida à canadiana Bombardier Transportation, que herda a fábrica da Amadora. Em teoria, a integração em grupos globais deveria garantir mercados, tecnologia e escala. Na prática, a unidade portuguesa passa, progressivamente, de centro de projecto e fabrico integrado a mera unidade de montagem, dependente de decisões tomadas em escritórios a milhares de quilómetros de distância. 12

Em 2001, já sob a bandeira Bombardier, decide-se que a Amadora será uma das últimas sete fábricas na Europa, mas sobretudo como reserva de capacidade de montagem, a usar “se necessário”. A frase esconde a realidade: menos engenharia própria, menos autonomia, menos poder de decisão. E, inevitavelmente, menos futuro.

4. A tesoura europeia: sobrecapacidade, concursos e deslocalização silenciosa

No início dos anos 2000, a Bombardier conduz uma reestruturação global: há excesso de capacidade de produção de material ferroviário na Europa e procura insuficiente para manter todas as fábricas abertas. Na análise fria de “spreadsheet”, algumas unidades tinham de cair — e a SOREFAME estava numa periferia conveniente. A fábrica é encerrada em 2004/2005, justificado com “procura limitada” e “sobrecapacidade” no sector. 13

Mas essa explicação económica, embora real, é apenas metade da história. A outra metade está nas decisões políticas tomadas em Lisboa e em Bruxelas:

  • CP e Metro de Lisboa começaram a comprar material a consórcios estrangeiros, sem exigência séria de incorporação nacional, num contexto em que a SOREFAME podia ter sido parceira de referência.
  • Os concursos públicos europeus, concebidos sob a bandeira da “concorrência aberta”, favoreceram grupos gigantes com forte poder de lobby, em detrimento de fábricas periféricas sem massa crítica.
  • Não houve uma estratégia portuguesa para utilizar a procura interna (comboios suburbanos, regionais, modernização de linhas) como alavanca para manter e evoluir a capacidade industrial instalada na Amadora.

Sindicatos, trabalhadores e analistas críticos falaram, com razão, em “assassínio da Sorefame”: uma combinação de submissão às regras de mercado mais agressivas, ausência de visão estratégica nacional e a opção política de aceitar que Portugal seria comprador de comboios, não construtor. 14

5. O fim físico: máquinas desmontadas, memória à porta da fábrica

O encerramento não foi um acto administrativo abstrato. Em 2005, enquanto se desmontavam máquinas no interior, trabalhadores mantinham vigílias à porta, tentando impedir a saída dos equipamentos que tinham operado durante décadas. 15 Parte dos terrenos foi expropriada para formação ferroviária, outra parte vendida a uma empresa de vidros. As naves que um dia abrigaram o som metálico de comboios em construção foram, pouco a pouco, esvaziadas e convertidas em ruína, armazém ou cenário de nostalgia industrial.

Ficaram as carruagens inox, espalhadas pelas linhas do país, algumas em serviço, outras esquecidas em ramais mortos; ficaram fotografias em arquivos, exposições pontuais e maquetas em escala H0 que hoje tentam, em miniatura, reconstruir uma grandeza que o país deixou cair. 16

6. Porque é que a SOREFAME acabou destruída?

Se condensarmos a história à pergunta essencial — porque é que a SOREFAME acabou destruída? — a resposta não cabe num único culpado nem numa frase simples. Mas pode ser vista como a convergência letal de cinco factores:

  1. Perda de visão estratégica nacional
    Portugal nunca tratou a SOREFAME como activo estrutural de soberania industrial, articulando encomendas públicas, exportação e desenvolvimento tecnológico. Tratou-a como mais uma empresa, descartável, na voragem das modas privatizadoras.
  2. Integração desigual em grupos multinacionais
    A entrada em grupos como ABB, ADtranz e Bombardier trouxe tecnologia e mercado, mas também centralização de decisões noutros países. Sem peso político e sem escala, a unidade da Amadora tornou-se candidata natural ao encerramento quando chegou a hora dos cortes. 17
  3. Políticas europeias de concorrência sem política industrial
    A abertura dos concursos a nível europeu, sem contrapartidas fortes de incorporação local, funcionou como tapete vermelho para grandes fabricantes estrangeiros e como tapete puxado debaixo dos pés da indústria ferroviária portuguesa.
  4. Gestão errática e subaproveitamento da capacidade técnica
    De escola de engenharia e fabrico completo, a SOREFAME foi sendo reduzida a linha de montagem, desperdiçando o talento acumulado de engenheiros, desenhadores e operários altamente qualificados.
  5. Desinvestimento político na indústria pesada
    Ao longo de décadas, o país foi aceitando a narrativa cómoda de que Portugal deveria “apostar em serviços”, turismo e construção civil. A metalomecânica pesada, exigente e tecnicamente densa, foi sendo vista como peso morto em vez de plataforma de futuro.

O resultado é o que conhecemos: um país que, em 2025, continua a comprar comboios ao estrangeiro, a discutir atrasos de encomendas e a lamentar-se do estado da ferrovia — mas que já teve, em Amadora, uma fábrica capaz de desenhar, construir e exportar material circulante de qualidade internacional.

7. O futuro que podia ter sido

A história da SOREFAME é, no fundo, um espelho ampliado da forma como Portugal tratou a sua modernidade industrial: com entusiasmo inicial, orgulho pontual, negligência persistente e, por fim, abandono. Num outro ramo do multiverso, a fábrica da Amadora teria evoluído para centro de excelência em comboios eléctricos, material para alta velocidade ou soluções híbridas, ancorando um cluster tecnológico ferroviário exportador.

No nosso ramo do tempo, sobraram terrenos repartidos, memórias dispersas e um vazio estratégico. Quando hoje se fala em investir centenas de milhões de euros numa nova fábrica de material circulante na região do Médio Tejo, o eco é inevitável: já tivemos essa capacidade — e deixámos que a destruíssem. 18

Talvez a melhor homenagem à SOREFAME não seja apenas preservar carruagens em museus ou organizar visitas às ruínas da fábrica. Será, sobretudo, recusar repetir o erro: compreender que um país que abdica da sua indústria pesada abdica também de uma parte da sua liberdade. Porque quem não sabe construir os seus próprios comboios, um dia descobre que também já não sabe para onde vai.

Texto de Francisco Gonçalves em co-autoria com Augustus Veritas,
na série “Contra o Teatro da Mediocridade”.
Comboios, fábricas e memórias: quando o aço conta a história do país que poderíamos ter sido.

Este artigo foi escrito com base em fontes fidedignas e o autor acompanhou de perto a ascenção e queda de um império industrial. E para que os mais jovens saibam o país que fomos, e ao que actualmente estamos reduzidos, como nação subserviente e dependente totalmente do exterior.

Fontes e referências

Este artigo foi elaborado com base em documentação histórica, testemunhos de trabalhadores,
estudos académicos e registos públicos sobre a SOREFAME, a sua evolução e o processo que levou
ao seu desmantelamento.

🌌 Fragmentos do Caos: BlogueEbooksCarrossel

Francisco Gonçalves, com mais de 40 anos de experiência em software, telecomunicações e cibersegurança, é um defensor da inovação e do impacto da tecnologia na sociedade. Além da sua actuação empresarial, reflecte sobre política, ciência e cidadania, alertando para os riscos da apatia e da desinformação. No seu blog, incentiva a reflexão e a acção num mundo em constante mudança.

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