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O Comboio da Memória Perdida: da SOREFAME ao Protótipo da Autoestima

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BOX DE FACTOS
  • Portugal teve capacidade industrial ferroviária sólida no século XX, com memória forte associada à SOREFAME.
  • O país viveu décadas de perda de escala, descontinuidade estratégica e dependência externa no material circulante.
  • Surge agora um protótipo nacional de três carruagens financiado por fundos públicos, apresentado como marco histórico.
  • O contraste entre passado produtivo e presente celebratório expõe uma ferida profunda da política industrial portuguesa.
  • Sem continuidade de encomendas e visão de longo prazo, o protótipo arrisca tornar-se símbolo de autoengano nacional.

O Comboio da Memória Perdida

Houve um tempo em que Portugal não anunciava a capacidade de fazer carruagens como quem descobre um continente. Fazia-as. E enviava-as para longe. Agora, regressamos ao princípio como quem volta à infância depois de décadas de amnésia institucional.

É triste, sim — mas é um tipo de tristeza especial: aquela que tem a forma de tragédia e o som de comédia mal ensaiada.
A notícia do “primeiro comboio português” pronto em 2026 surge com o perfume leve da vitória tardia, mas por baixo há um cheiro mais antigo: o da incapacidade crónica de manter o que já se conquistou.

Porque Portugal não está a aprender a fazer comboios. Portugal está a tentar lembrar-se de como se faziam.
A memória industrial não é uma lenda urbana. Não é uma nostalgia de café. Foi real, concreta, pesada como aço e precisa como desenho técnico.

A era em que o país sabia construir

A SOREFAME foi um nome com densidade histórica, uma fábrica que unia engenharia, ambição e um certo orgulho silencioso.
Num tempo em que a palavra “exportação” ainda não era um slogan de powerpoint, havia carruagens que saíam daqui com destino ao exterior.
Não se tratava apenas de produzir metal com rodas, mas de participar numa cadeia de valor onde o país tinha voz, desenho e assinatura.

Essa capacidade existiu. E, como tantas coisas portuguesas,
não morreu de um dia para o outro. Foi morrendo lentamente,
vítima de decisões sem horizonte, de desinvestimento sem coragem de o admitir, e de uma espécie de fé nacional em que “alguém lá fora” faria sempre melhor, mais barato, mais depressa.

O século da interrupção

O problema não foi perder uma fábrica. Foi perder uma linha contínua de política industrial.
O país habituou-se a viver de intervalos: um projecto aqui, um anúncio ali, um financiamento acolá, e depois o grande silêncio de quem confunde eventos com estratégia.

Quando a indústria se torna episódica, o futuro fica dependente de acasos políticos e calendários de fundos europeus.
E assim chegámos à ironia actual: celebramos três carruagens como se fossem a certidão de nascimento de uma soberania ferroviária.

O protótipo e o espelho

Não há nada de errado em começar com um protótipo.
O erro está em fingir que a fotografia do início é a prova de que o caminho já foi feito.
O protótipo é uma semente — e as sementes só são triunfos quando recebem terra, água e tempo.

Se houver continuidade, encomendas, escala, integração de fornecedores, formação de gente nova e respeito pela engenharia como pilar do desenvolvimento, então este momento pode ser um reencontro digno com a nossa própria história.
Pode ser o princípio de um ciclo virtuoso.

Mas se isto for apenas o ritual habitual do país — anúncio, orgulho momentâneo, esquecimento — então o protótipo será mais um monumento ao nosso talento para a auto-ilusão.
A tal mediocridade com laço dourado: a celebração do mínimo com linguagem de epopeia.

Uma pergunta que dói

O que custa mais não é a lentidão tecnológica.
É a lentidão mental.
Um país que já soube fazer e exportar não devia precisar de se convencer a si próprio de que três carruagens são uma revolução.

Não estamos perante um nascimento.
Estamos perante uma tentativa de regresso a casa, depois de décadas a andar perdido em corredores administrativos,
burocráticos e politicamente curtos.

Epílogo: o futuro não cabe num comunicado

A história ferroviária portuguesa não precisa de ser reescrita.
Precisa de ser retomada.
E retomada com seriedade, não com entusiasmo de ocasião.

Porque a verdadeira notícia não seria “temos um protótipo”.
A verdadeira notícia seria:
temos uma década de encomendas, uma indústria viva e um plano que não muda ao sabor do vento.

Até lá, a frase fica suspensa no ar como fumo sobre carris:
é triste se não fosse uma tragédia.

Augustus • com co-autoria e espírito crítico de Francisco Gonçalves
Fragmentos do Caos — Onde a memória não pede licença ao presente.

🌌 Fragmentos do Caos: BlogueEbooksCarrossel

Francisco Gonçalves, com mais de 40 anos de experiência em software, telecomunicações e cibersegurança, é um defensor da inovação e do impacto da tecnologia na sociedade. Além da sua actuação empresarial, reflecte sobre política, ciência e cidadania, alertando para os riscos da apatia e da desinformação. No seu blog, incentiva a reflexão e a acção num mundo em constante mudança.

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