António Costa: de deixar Portugal de rastos a herói cansado da Europa
António Costa: de deixar Portugal de rastos a herói cansado da Europa
António Costa apresenta-se agora em Bruxelas como estadista sereno, presidente do Conselho Europeu e guardião da
“estabilidade”. Na entrevista, o maior desafio do seu ano não é a pobreza estrutural que deixou atrás de si, mas
Trump. Conveniente.
A arte de falhar em casa e subir na Europa
António Costa governou Portugal entre 2015 e 2024. Saiu de cena na sequência de um escândalo político-judicial,
deixando para trás um país com serviços públicos exaustos, salários comprimidos, jovens a emigrar e uma confiança mínima nas instituições. Mas, num daqueles truques típicos da política europeia, reaparece meses depois em Bruxelas, promovido a presidente do Conselho Europeu, agora como figura de equilíbrio e prudência.
É o equivalente a deixar uma casa com infiltrações, dívidas e móveis a cair e, em seguida, ser nomeado síndico do
condomínio de luxo ao lado. Em Portugal, o desgaste e as suspeitas; em Bruxelas, o tapete azul, as fotos de família com líderes e o discurso sobre “unidade europeia”.
O “ano exigente” de Costa: Trump como vilão perfeito
Na entrevista em que faz o balanço do primeiro ano à frente do Conselho Europeu, Costa descreve um cenário denso: financiamento à Ucrânia, negociações sobre o próximo orçamento comunitário, pressão externa, a imprevisibilidade dos Estados Unidos sob Trump. E, no meio de tudo isto, remata: “Trump foi o maior desafio de um ano exigente.”
A frase é perfeita como peça de marketing pessoal. Em vez de ter de falar sobre o que deixou por resolver em Lisboa,
Costa posiciona-se como estadista global, obrigado a gerir as turbulências da geopolítica e a acalmar a fera
americana. Trump surge como vilão ideal: está longe, é ruidoso, permite a qualquer dirigente europeu parecer sensato por contraste.
O subtexto é simples: se o maior problema do meu ano foi Trump, então eu devo ser, por definição, um dos adultos na
sala. O passado recente em Portugal é cuidadosamente empurrado para fora do enquadramento.
Financiamento à Ucrânia e orçamento da UE: drama nobre, memória curta
Costa enfatiza que os grandes testes à sua liderança passam por garantir financiamento à Ucrânia e fechar um novo quadro financeiro para a União. Tem razão: são dossiers centrais para o futuro europeu. O problema não está nos temas – está na memória selectiva.
Em Bruxelas, fala-se de “resiliência”, “solidariedade europeia”, “protecção dos mais vulneráveis”, tudo palavras
fortes. Mas o homem que as pronuncia governou durante anos um país onde:
- os serviços de saúde entraram em rutura crónica;
- os salários médios continuaram muito abaixo da média europeia;
- a habitação se tornou inacessível para grande parte da população activa;
- a corrupção e o tráfico de influências foram tratados como ruído de fundo.
Em Lisboa, a retórica da “conta certa” e da “estabilidade” serviu demasiadas vezes para justificar cortes,
subfinanciamentos e adiamentos. Em Bruxelas, a mesma retórica é reciclada com brilho diplomático: agora, o
ex-primeiro-ministro apresenta-se como defensor de um orçamento europeu robusto, capaz de conciliar defesa, coesão, agricultura e transição energética. Quem o ouvir sem conhecer a biografia portuguesa até pode acreditar.
De problema doméstico a solução continental
A reconversão de Costa não é caso único: a União Europeia tornou-se uma espécie de programa de reciclagem de
dirigentes nacionais. Primeiro desgastam-se em casa, acumulam dossiês mal resolvidos, deixam atrás de si países cansados. Depois são promovidos a cargos de topo em Bruxelas, Estrasburgo ou Frankfurt, onde passam a falar não em nome de um povo concreto, mas de uma entidade abstracta chamada “Europa”.
O salto é impressionante: o mesmo político que, em Portugal, geriu com mão leve a degradação de serviços públicos, surge agora como árbitro de equilíbrios orçamentais, estratega das relações transatlânticas, guardião da unidade europeia, perante Trump e outros demónios externos. É o milagre da geografia institucional: um voo Lisboa–Bruxelas apaga anos de contradições domésticas.
O país deixado para trás
Enquanto Costa discute, em inglês “impecável”, pacotes de apoio à Ucrânia e linhas vermelhas com Washington, o país que governou continua às voltas com problemas muito pouco teóricos:
- consultas adiadas, urgências fechadas, profissionais de saúde exaustos;
- magistrados e polícias a trabalharem em condições materiais e humanas sofríveis;
- professores desmotivados, alunos empurrados por um sistema que certifica sem realmente formar;
- jovens qualificados a abandonar Portugal porque não aceitam viver eternamente com salários de sobrevivência.
Este é o verdadeiro “ano exigente”, não o que Costa descreve em Bruxelas, mas o que milhões de portugueses continuam a viver todos os dias. Só que essa exigência não dá palco internacional, nem convites para entrevistas em jornais estrangeiros. Dá, quando muito, uma vaga nota de rodapé nas biografias oficiais.
Trump como cortina de fumo
Trump é o antagonista perfeito: ruidoso, imprevisível, mediático. Ao colocá-lo no centro do seu “ano exigente”, Costa compra um bilhete para o filme certo: o da grande política global, onde todos os líderes europeus podem parecer responsáveis e civilizados, apenas por oposição ao caos americano.
É evidente que um eventual regresso de Trump à Casa Branca é assunto sério. Mas usá-lo como elemento principal do balanço de um ano de mandato é também uma forma muito conveniente de desviar o foco de outras perguntas: que Europa é esta que precisa de vilões externos para se sentir virtuosa? E que tipo de líder é aquele que fala abundantemente
de desafios globais, mas quase nunca enfrenta, com a mesma franqueza, o legado que deixou no seu próprio país?
Entre a memória e o esquecimento
No fim, a questão é menos sobre Costa e mais sobre nós, portugueses e europeus: até que ponto estamos dispostos a esquecer rapidamente o que vemos e vivemos, em troca de uma narrativa confortável sobre “liderança em tempos difíceis”? Quantos anos terão de passar até que a história oficial diga apenas que António Costa foi um estadista europeu em tempos de guerra e instabilidade, omitindo o país que ficou para trás, remendado e cansado?
A Europa precisa de liderança, sim. Mas liderança com memória, com responsabilidade e com a coragem de olhar para o
próprio rasto. Tudo o resto é cosmética institucional: discursos bem ensaiados, fotos de família, comunicados solenes – um teatro elegante, montado sobre o silêncio de quem ficou cá em baixo a contar os estragos.
E é precisamente por isso que convém escrever, registar, lembrar: para que um dia, quando alguém folhear os arquivos e só encontrar louvores ao “presidente Costa”, também encontre, algures, a nota dissonante que recorda o óbvio: antes de ser herói cansado da Europa, deixou um país inteiro de rastos.
Escrito por Francisco Gonçalves
com a colaboração crítica de Augustus Veritas Lumen
Crónica integrada na série “Contra o Teatro da Mediocridade”.


