O Elevador do Lucro: Seguradoras, Cartéis Suaves e o Povo na Linha de Pagamento
BOX DE FACTOS
- O presidente da Fidelidade declarou “inevitável” o aumento dos prémios dos seguros automóveis em 2026, invocando a subida dos custos de sinistros e reparações.
- A Fidelidade é a seguradora que tera que responder perantes as indemnizações do grave acidente do elevador/ascensor da Carris, com múltiplas vítimas mortais e feridos graves.
- O sector segurador em Portugal é altamente concentrado: poucos grupos dominam a maioria do mercado em vários ramos.
- A Autoridade da Concorrência já condenou um cartel no sector segurador noutros ramos, por práticas de fixação de preços e repartição de mercado.
- Enquanto se fala de indemnizações “complexas e demoradas”, anuncia-se em paralelo a “inevitabilidade” de novos aumentos para todos os segurados.
O Elevador do Lucro: Seguradoras, Cartéis Suaves e o Povo na Linha de Pagamento
E, estranhamente, é quase sempre o mesmo clube económico que carimba a factura, em nome do “mercado”.
1. O anúncio sereno do inevitável
Em estúdio, o presidente de uma grande seguradora fala com a calma de quem não tem pressa.
Explica, com voz académica, que em 2026 será “inevitável” aumentar os prémios dos seguros automóveis.
Os custos subiram, os sinistros aumentaram, as reparações estão mais caras.
A palavra inevitável cai sobre o ouvinte como uma sentença meteorológica: não é uma decisão humana, é uma espécie de tempestade económica vinda dos céus.
Do outro lado da emissão, o cidadão comum faz as contas: combustível mais caro, inspecções, manutenção, impostos, portagens — e agora, outra voltinha de parafuso no seguro.
Nunca se ouve falar em margens, em lucros acumulados, em décadas de prémios pagos sem sinistros.
O discurso é sempre o mesmo: quando o preço sobe, é o “mercado”; quando o preço cai, é uma gralha estatística.
2. O elevador que cai, o prémio que sobe
No meio desta serenidade técnica há um pormenor que grita: a mesma seguradora que vem anunciar a inevitabilidade dos aumentos é aquela que tem sob sua responsabilidade as indemnizações às vítimas do elevador da Carris.
Um equipamento histórico, símbolo turístico, cai na realidade dura do asfalto e da carne: mortos, feridos, famílias destroçadas, vidas interrompidas.
Seguem-se as declarações oficiais: o processo é complexo, as perícias são demoradas, as indemnizações vão levar o seu tempo, mas “ninguém ficará desamparado”.
Palavras ditas em tom comprometido, com o peso institucional de quem assegura tudo : menos a rapidez e a humanidade que as vítimas mereciam à partida.
E enquanto as famílias contam dias, papéis e dores, o mesmo universo corporativo já prepara o capítulo seguinte: as contas actuariais, os modelos de risco, as projecções de custos.
O resultado é servido ao país com uma frase redonda: os prémios têm de subir.
O que para as famílias foi um abismo, para a máquina seguradora é apenas uma linha numa folha de cálculo.
3. Cartéis julgados e cartéis suaves
O sector segurador português tem um passado recente que não é propriamente angelical.
A Autoridade da Concorrência já apanhou um verdadeiro cartel nalguns ramos, com partilha de mercado e fixação de preços, punido com coimas pesadas.
Foi notícia, foi escândalo por alguns dias, foi conversa de café.
Depois, como quase sempre, o país esqueceu.
Hoje, não é preciso uma reunião secreta numa cave para afinar a música.
Bastam poucos grupos dominarem o mercado, todos com custos parecidos, todos a verem os mesmos gráficos, todos a falarem a mesma novilíngua do risco.
Quando um sobe, os outros “acompanham a realidade do sector”.
Quando outro ajusta, ninguém baixa para valer — apenas moldam as margens com mão invisível.
Para o cidadão, isto parece um cartel suave: não precisa de conspiração formal, porque o alinhamento estrutural faz o trabalho sozinho.
Em teoria, há concorrência; na prática, o consumidor observa uma coreografia de preços
que se move quase em bloco, sempre na mesma direcção.
4. O risco privatizado no lucro e socializado na factura
O discurso oficial fala de risco. Risco rodoviário, risco climático, risco tecnológico, risco inflacionista.
O risco tornou-se a grande palavra-guarda-chuva, capaz de justificar tudo, desde a letra miudinha até à subida suave mas constante dos prémios.
Mas, na vida real, o que vemos é outra coisa:
o risco é privatizado, o lucro é socializado na factura.
Quando o ano corre bem, os sinistros são relativamente contidos, os investimentos
financeiros correm a favor, os resultados chamam-se “bons”, “muito sólidos”, “robustos”.
Ninguém fala em devoluções automáticas aos segurados, em baixar generalizada de prémios,
em partilha dos bons anos com quem paga a festa.
Já quando os custos aumentam, por razões reais ou oportunamente inflacionadas, ou quando uma tragédia como a do elevador da Carris rebenta no meio da paisagem urbana, então o discurso muda para “inevitável”, “estrutural”, “imprescindível”.
A solução é quase sempre a mesma: o povo paga.
Pagam os que tiveram sinistro, pagam os que nunca tiveram, pagam até os que mal conseguem manter o carro seguro para ir trabalhar.
5. O silêncio do Estado e o conforto do feudo
No meio desta engrenagem, o Estado surge como figurante envergonhado.
Há reguladores, há supervisores, há autoridades com nomes longos e relatórios bem compostos.
Mas o cidadão olha em volta e vê outra coisa: as grandes seguradoras prosperam, os prémios crescem, os lucros resistem, e as grandes tragédias são tratadas como “casos complexos” que exigem “tempo e prudência”.
O silêncio é particularmente ensurdecedor quando as coincidências se acumulam: a mesma seguradora que está no centro de um desastre colectivo é também aquela que, pouco tempo depois, fala ao país sobre a inevitabilidade de pagar mais pelo seguro do carro.
O Estado, que deveria questionar margens, estrutura de mercado, eficácia de indemnizações e protecção efectiva das vítimas, limita-se muitas vezes a assistir à liturgia do “mercado funciona”.
Assim, o sector segurador não é apenas um ramo de actividade: é um feudo moderno,
protegido por linguagem técnica, relações institucionais e a desculpa perfeita de que tudo é “complexo”.
Complexa é a vida de quem recebe o salário mínimo e vê o prémio do seguro crescer todos os anos, sob pena de ficar ilegal e vulnerável na estrada.
6. O que pode o cidadão fazer num tabuleiro viciado?
Perante este tabuleiro viciado, é legítimo perguntar: o que pode fazer o cidadão comum?
A resposta não é milagrosa, mas existe.
Em primeiro lugar, recusar o automatismo.
Não renovar por inércia, pedir simulações, confrontar mediadores, colocar seguradoras a concorrer pela mesma apólice. Por pouco que pareça, cada movimento destes quebra um pouco a certeza confortável
de que o consumidor aceitará sempre, calado, o próximo aumento inevitável.
Em segundo lugar, pressionar politicamente: associações de consumidores, petições, escrutínio público, perguntas aos partidos, exigência de auditorias independentes às margens e práticas do sector.
O silêncio é o melhor amigo dos cartéis suaves; a luz é o seu maior inimigo.
Em terceiro lugar, defender as vítimas.
Sempre que uma tragédia se cruza com uma seguradora, a questão não pode ser apenas “se” paga, mas “como”, “quando” e “com que respeito”.
A rapidez, a clareza e a justiça das indemnizações são o verdadeiro exame ético do sector : muito mais do que as conferências sobre risco e sustentabilidade.
7. Epílogo: o elevador e a metáfora
O elevador que caiu não é apenas um acidente.
É uma metáfora brutal do país: um sistema que se diz seguro, uma máquina que parece sólida, um percurso que toda a gente conhece, até ao dia em que os cabos cedem e a confiança desaba com estrondo.
Lá em cima, nos escritórios acarpetados, o debate faz-se em gráficos,
provisões técnicas e rácios de solvabilidade.
Cá em baixo, no chão da cidade, as famílias contam ausências,
os trabalhadores contam euros, os automobilistas contam centavos para manter o carro segurado.
Entre estes dois mundos há uma distância que nenhuma apólice cobre.
Talvez um dia o país perceba que o verdadeiro seguro não está na capa brilhante da apólice, mas na coragem de enfrentar os feudos económicos que transformam o risco num negócio e a necessidade numa renda perpétua.
Até lá, o elevador do lucro continuará a subir sereno
e o povo continuará, como sempre, a pagar bilhete para uma viagem que nunca escolheu.
ao serviço de uma única seguradora: a verdade nua, sem apólice de desculpas.


