
O Julgamento da Palavra: Jornalismo na Fogueira
Quando o Poder se Torna Inquisidor-Geral
Da verdade incómoda ao controlo da narrativa — o novo rosto da desconfiança institucional em Portugal
No programa Grande Entrevista da RTP, o secretário-geral do PSD, Hugo Soares, sugeriu que as notícias sobre a investigação à Spinumviva poderiam assentar em “fontes inventadas”. Pediu “mais escrutínio” aos jornalistas — e mais “sentido crítico” aos portugueses. O episódio reacendeu o debate sobre a relação entre o poder político e a liberdade de imprensa.
Há uma linha muito ténue entre a defesa da verdade e o policiamento da narrativa. Quando um governante começa a insinuar que as fontes jornalísticas podem ser “inventadas”, o perigo já não é a mentira — é o poder acreditar-se dono exclusivo da verdade.
O comentário de Hugo Soares não é um simples desabafo mediático; é um sintoma. A política portuguesa tem vindo a desenvolver uma alergia crescente ao escrutínio. A cada notícia incómoda, o instinto não é esclarecer — é descredibilizar. O discurso muda subtilmente: o repórter transforma-se em suspeito, o jornal em arguido, e o poder em juiz de moral pública.
Do escrutínio ao julgamento das notícias
Não há democracia madura onde o poder questione o próprio ato de informar. A suspeita generalizada sobre “fontes inventadas” é um eco distante das velhas fogueiras da censura, agora travestidas em sofisticação democrática. A estratégia é moderna, mas o espírito é antigo: se não se pode queimar jornais, queime-se a sua credibilidade.
Em vez de promover transparência, o poder político passou a gerir a dúvida como arma. “Nada é certo, tudo pode ser manipulado”, repete-se, até que o público, cansado de ruído, desiste de acreditar em qualquer verdade. E quando o povo desiste de acreditar, o poder vence — porque a desconfiança generalizada é o terreno mais fértil para a impunidade.
A nova Inquisição da Dúvida
Hugo Soares não acendeu apenas uma polémica; acendeu uma fogueira simbólica. Cada vez que um político insinua que “as fontes são inventadas”, um repórter hesita em investigar, um editor recua na manchete, e a verdade perde um pouco mais de fôlego. É a Inquisição da Dúvida: não se queimam corpos, queimam-se confianças.
Esta nova forma de censura é mais eficaz porque é interiorizada. O cidadão aprende a desconfiar de tudo — sobretudo de quem denuncia. O Estado lava as mãos e proclama inocência, enquanto o jornalismo é deixado a arder sozinho na praça pública digital.
Quando o poder se julga inocente por definição
O poder não quer apenas governar; quer definir o enquadramento moral do país. Quer ser o árbitro do real, o filtro do verosímil. É assim que as democracias se degradam — não por golpe, mas por erosão. Quando o cidadão deixa de saber em quem confiar, a manipulação já venceu, e a verdade torna-se apenas uma questão de conveniência.
O que está em causa não é a reputação de um governante nem o rigor de uma redação; é a fronteira entre a liberdade e o condicionamento. A imprensa não é perfeita, mas é a última trincheira entre o cidadão e o poder absoluto. E quando o poder se torna inquisidor, a liberdade transforma-se em suspeita.
Conclusão — O eco de um país que duvida de si
Portugal vive um tempo de desconfiados e desconfiantes. A política fala de “sentido crítico”, mas teme-o. Quer “escrutínio”, mas apenas o conveniente. A liberdade de informar torna-se um ato de resistência quotidiana, e o jornalismo sério, um ofício perigoso.
Hugo Soares poderá dizer que pediu apenas rigor. Mas o subtexto é mais profundo: o poder já não quer ser questionado — quer ser acreditado. E quando o poder exige fé, já não governa uma república: governa uma igreja de silêncio.
“O poder teme mais a dúvida do que o erro — porque a dúvida é o primeiro passo para a liberdade.”

