
Portugal : Caminhámos Livres… Até que Vieram os Partidos
Cheirava a Liberdade
O Portugal que vivi aos dezassete anos era ainda o Portugal de Salazar — e depois, o de Marcelo Caetano. Um país de silêncio forçado, de censura e vigilância, mas também, paradoxalmente, de um certo fervilhar que se pressentia.
Mesmo sob o peso da repressão, algo andava no ar. E cheirava a liberdade.
Na Covilhã, onde estudava, a minha mente despertava. Vinha de um passado vivido entre a dureza da terra e a pobreza da aldeia dos meus avós. Tinha visto demais para ficar quieto. Lia, escondido, a revista O Tempo e o Modo, recebi-a mensalmente como quem recebe cartas clandestinas de um futuro possível. Fui voraz na leitura de livros proibidos axque tinha acesso, das mais diversas formas. Havua pequenas tertulias onde tudo se discutia com a vivacidade daqueles anos. Estudava filosofia, sociologia, e neles encontrava ferramentas para desmontar o mundo — e tentar reconstruí-lo.
🕊️ O Tempo e o Modo — Uma Revista que Cheirava a Liberdade
>Fundada em 1963, O Tempo e o Modo foi muito mais do que uma revista cultural. Tornou-se uma das mais importantes vozes críticas do regime salazarista, escrita por intelectuais progressistas, católicos inconformados e jovens pensadores que ansiavam por uma democracia em Portugal.
Entre os seus colaboradores estavam nomes como José Augusto França, Vasco Pulido Valente, Eduardo Prado Coelho, Jorge de Sena, Helder Macedo, entre outros. Debatendo filosofia, política, teologia e liberdade com subtileza e coragem, tornou-se leitura essencial para quem queria pensar fora do quadrado — num país onde pensar podia ser perigoso.
Quando chegou o 25 de Abril, não me apanhou de surpresa. Apanhou-me vivo. Apanhou-me desperto, com sede de futuro. Continuei estimulado, participei, colaborei, fui à política com esperança. Mas percebi cedo — demasiado cedo — que o caminho se estreitava: a disciplina partidária matava o pensamento livre. Os partidos pareciam igrejas laicas, e as promessas de liberdade vinham escritas com tinta invisível.
Foi então que compreendi: política e religião são hastes da mesma cepa, a cepa do domínio. Ambas cultivam o dogma, domesticam o espírito e perpetuam, de modos diferentes, a servidão voluntária da humanidade.
Os partidos, como as religiões, vendem promessas — a salvação no outro mundo.
Neste, a propriedade é só deles.
Escolhi, por isso, outro rumo. Apostei nas tecnologias, nas ideias, na criação, no pensamento livre alimentado pela lógica e pela ciência. Acreditei — com convicção e optimismo — que Portugal, com a sua indústria naval, ferroviária, metalomecânica e eletrónica, poderia levantar-se. Que seríamos uma Finlândia do sul, uma democracia vibrante, um país que se reconstrói com inteligência, suor e dignidade.
Mas enganei-me.
Redondamente.
Hoje, à distância, olho para este país esvaziado, vendido em parcelas, dirigido por marionetas e habitado por cidadãos exaustos. E pergunto-me:
Como é que nos deixámos arrastar até este ponto miserável que é hoje Portugal?
” — Francisco Gonçalves, in Fragmentos de Memoria e Caos.

