
Crónica de um Homem que Tem o Hábito de Pensar
Nasceu com a cabeça no lugar, mas logo percebeu que isso era um fardo.
Desde pequeno, fazia perguntas que incomodavam:
“Porque é que o professor manda calar quem tem razão?”
“Porque é que se reza mais do que se faz?”
“Porque é que os bons têm sempre de se justificar e os tolos nunca se calam?”
Cresceu num país onde pensar é como usar gravata numa praia:
dá nas vistas, provoca risos ou desconfiança.
Mas ele insistiu.
Cultivou o hábito de pensar como quem cultiva uma pequena horta —
entre pedras, ervas daninhas e cães vadios que lhe mijavam nas ideias.
O homem que pensa acorda cansado, não do corpo — mas do mundo.
Lê as entrelinhas, escuta o silêncio por trás do barulho,
vê a encenação por detrás do telejornal.
Enquanto os outros se empanturram de ruído e distração,
ele mastiga dúvidas, digere contradições.
Não tem muitos amigos.
Os que pensam são poucos, e os que ouvem pensadores são ainda menos.
Os outros — os normais — preferem o conforto da ignorância polida,
dos chavões que não incomodam, da verdade pasteurizada.
Já lhe chamaram de tudo:
“radical”, “amargo”, “anti-sistema”, “resingão”, “iluminado”.
Mas tudo o que ele queria era simples:
— um país onde a honestidade não fosse ingénua,
— onde a inteligência não fosse um fardo,
— onde o mérito não andasse com muletas.
Mas ele continua.
A pensar.
Não porque isso lhe traga recompensa —
mas porque é a única forma de se sentir vivo no meio da paralisia.
E quando, ao fim do dia, o mundo se cala por um instante,
ele acende uma luz interior e pergunta a si mesmo:
“Estarei errado, ou sou apenas um homem acordado numa terra de sonâmbulos?”
Crónica de Francisco Gonçalves

