Burocracia,  Justiça e Democracia,  Sociedade e politica

O Estado Novo Nunca Fez o Check-Out

Caiu a ditadura, mas não caíram os alicerces. Portugal acordou em democracia no dia 25 de Abril de 1974, mas deixou as janelas e portas do velho regime escancaradas. E o Estado Novo, fiel ao seu hábito de se instalar sem pressa, nunca mais saiu.

Passaram cinquenta anos. Meia vida de gerações inteiras. Mas nas repartições de finanças, nos tribunais, nas câmaras municipais e nas direções-gerais, ainda ecoa o mesmo tom monocórdico, a mesma exigência de carimbos, o mesmo medo de decidir — heranças diretas de uma administração pública desenhada para obedecer, nunca para pensar.

A função pública, grande bastião da continuidade salazarista, permanece um santuário de estabilidade sem inovação. Meritocracia é uma palavra decorativa nos regulamentos. A antiguidade ainda reina como critério sagrado. A iniciativa é suspeita. A criatividade, um risco a evitar. E o cidadão? Um intruso a controlar, e não um contribuinte a servir.

A justiça, essa dama cansada, arrasta-se entre prazos dilatados e um formalismo que beira o absurdo. Códigos processuais redigidos em estilo de missa solene. Magistrados protegidos por um corporativismo de toga. E os pobres — sempre os pobres — à espera que o Estado lhes conceda atenção depois de anos de recurso e contrarrazões.

O sistema fiscal, por sua vez, parece ter sido desenhado por um contabilista do século XIX com fobia a simplificações. Tudo é excesso. Excesso de papéis, de cruzamentos, de declarações, de prazos, de penalizações automáticas. Tudo serve para alimentar a máquina, não para libertar o contribuinte.

Portugal democratizou-se pela superfície. E é verdade que já ninguém é preso por delito de opinião, que já se pode votar livremente, que há debates na televisão e jornais com capas ousadas. Mas por baixo dessa fina camada democrática, o organismo do Estado mantém os reflexos do salazarismo entranhado: a desconfiança do cidadão, o culto da hierarquia, o receio da mudança e a alergia ao mérito.

O Estado Novo nunca fez o check-out. Apenas passou a vestir fatos democráticos, com crachás novos e discursos modernos. Mas no fundo, continua a decidir em silêncio, a barrar por formulário, a punir por descuido, a proteger os seus — e a olhar o povo como um número que convém não incomodar.

Se Abril foi uma alvorada, falta ainda a limpeza dos corredores.

O futuro não chegará enquanto o presente continuar a ser gerido por fantasmas do passado.

E talvez seja tempo de lhes entregar, de vez, a chave do quarto. E exigir-lhes que saiam.

Artigo de Francisco Gonçalves

Francisco Gonçalves, com mais de 40 anos de experiência em software, telecomunicações e cibersegurança, é um defensor da inovação e do impacto da tecnologia na sociedade. Além da sua actuação empresarial, reflecte sobre política, ciência e cidadania, alertando para os riscos da apatia e da desinformação. No seu blog, incentiva a reflexão e a acção num mundo em constante mudança.

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