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Crónicas da Ilusão Nacional – Episódio XXII: O Beato País do Comentário Eterno

Por Francisco Gonçalves – fragmentoscaos.eu

Portugal entrou oficialmente em modo sacristia. Durante três dias — e a contar — fomos todos, por decreto mediático, convidados a ajoelhar perante os ecrãs e entoar loas ao falecido Papa Francisco.

Não importa se és ateu, agnóstico, muçulmano ou apenas um cidadão exausto de tanta encenação — tinhas de assistir. Era obrigatório. Estava em todo o lado. Todos os canais. Todos os jornais. Todos os programas. Todos os políticos. Todos os comentadores. Todos os clérigos. Todos os ex-católicos reconvertidos à última hora.

O Papa morreu. E com ele, morreu também a programação televisiva, a pluralidade editorial, e o direito de mudar de canal sem tropeçar numa missa, num terço, ou num político emocionado a dizer que “Francisco era um homem do povo”.

Ah, que ironia!

Os mesmos que vivem murados no privilégio, que assinam contratos ruinosos com empresas amigas, que desprezam o povo com impostos, cortes e discursos de Excel — são agora súbitos devotos da humildade papal.

O primeiro-ministro, os líderes partidários, ex-presidentes, ex-bispos, ex-tudo — fizeram fila para declarar o quanto o Papa Francisco tocou os seus corações.
Tocou, sim — mas não o suficiente para mudarem de vida, nem de práticas.

É o beato país do comentário eterno. Onde o tempo pára para chorar o Papa, mas não há tempo para falar das pensões mínimas, dos sem-abrigo, dos jovens sem futuro.
Onde a fé é usada como cortina, e a emoção como distração.

O ridículo atingiu picos bíblicos:

  • repetições de imagens como se fossem visões místicas,
  • entrevistas com velhinhas que viram o Papa uma vez na televisão,
  • e especialistas a explicar o que já explicaram ontem, anteontem e na última hora.

Tudo em nome da “homenagem”.
Tudo em nome da “figura inspiradora”.
Tudo em nome de… evitar que o povo pense noutras coisas.

E assim seguimos. Com a cruz ao peito e a mão no bolso do contribuinte.

Porque nesta república secular, a fé é privada, mas o culto é obrigatório.
E se não te juntares à choradeira mediática, és insensível, frio, ou pior: blasfemo civil.


Mas há quem não ajoelhe. Há quem não se comova com teatrinhos. Há quem prefira a verdade à devoção plástica.

Esta crónica é por ti, leitor herético do bom senso.
No país do comentário eterno, resistir é um acto laico de lucidez.


Francisco Gonçalves, com mais de 40 anos de experiência em software, telecomunicações e cibersegurança, é um defensor da inovação e do impacto da tecnologia na sociedade. Além da sua actuação empresarial, reflecte sobre política, ciência e cidadania, alertando para os riscos da apatia e da desinformação. No seu blog, incentiva a reflexão e a acção num mundo em constante mudança.

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